quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A CARTA DA TERRA
Um passo adiante

Moacir Gadotti
Diretor do Instituto Paulo Freire
Professor titular da Universidade de São Paulo


A imaginação é mais importante do que o conhecimento.

Einstein



No final de abril de 2007 o Conselho Internacional da Carta da Terra reuniu-se na Amana-Key, em São Paulo. Um seminário de três dias precedeu e preparou a reunião. Venho acompanhando o processo da Carta da Terra desde 1992 e creio que essa reunião foi uma das mais importantes pelas possibilidades de expansão da Iniciativa da Carta da Terra que ela propiciou. É sobre esse encontro que gostaria de tecer algumas considerações com a intenção de sistematizar suas principais contribuições e ajudar o processo da Carta da Terra a dar mais um passo em direção à “vida sustentável”, seu maior objetivo.
Uma das propostas discutidas no encontro é que a Carta da Terra trabalhe como uma organização “caórdica”, isto é, que aceite ao mesmo tempo o caos (liberdade criativa, espaço para inovar, espaço para a diversidade de idéias) e a ordem (aquele mínimo de diretrizes a ser seguido por todos os envolvidos que faz com que o todo funcione e evolua). Essa idéia foi exposta pelo coordenador do seminário e diretor do Amana-Key, Oscar Motomura. Seria um design organizacional que substitui o design hierárquico, de comando e de controles, que ainda prevalece nas atuais organizações no mundo. A essência deve ser duradoura. A forma não. Ela deve ser transitória.
O caos criativo assegura que a organização continue evoluindo e se renovando. A organização é um organismo vivo e em evolução. No caórdico há descentralização máxima de poder. A organização precisa cultivar igualdade, autonomia e oportunidade para todos. Numa organização caórdica a liderança precisa ser biológica, motivadora, sem relação de mando e de subordinação. Nela prevalece o profissionalismo e senso de co-responsabilidade. No caórdico, privilegia-se a diversidade e não pessoas iguais. No caórdico, o comportamento das pessoas é algo espontâneo e não condicionado.
O processo da Carta da Terra precisa ser biológico (capilar, catalisar), o contrário do processo burocrático. Se adotamos um processo biológico a estrutura naturalmente vai mudar. Com um processo biológico não precisamos de grandes estruturas. A estrutura precisa ser flexível, ágil, descentralizada, democratizada. A estrutura precisa ser virótica, em redes de ajuda mútua. Em vez de centralizar, o processo cria pontos de irradiação, na forma de redes. A informação tem que circular entre os diferentes pontos. A gente funciona melhor quando está motivado. Quanto mais burocracia, mais disputa de território, disputa pelo controle.
O papel dos dirigentes é o de articuladores, o de enlace entre os nós das redes. Portanto, o papel de estímulo à co-responsabilidade, à co-operação. Sem estresse, com pureza e serenidade. A serenidade é a chave da eficiência, da eficácia. O desafio é gerar cooperação. É promover, e implementar. A adesão à Carta da Terra exige por parte das pessoas e instituições que aderem um forte engajamento, com compromisso explícito com a prática de seus valores e princípios.
A missão da Carta da Terra é construir um modo de vida sustentável para 6 bilhões de pessoas. Só através de um processo catalisador (que provoque setores chaves da sociedade), em muitos lugares, onde for possível pode ajudar a Carta da Terra a cumprir sua missão. Daí os desafios da Carta da Terra serem: disseminação (divulgação, para 6 bilhões de pessoas, sensibilização, integrar), educação (conhecimento, inspiração, empatia) e a mudança cultural. Divulgar, compreender, viver. Acariciar o mundo; não bombardeá-lo.
Precisamos empoderar, otimizar o que já existe pela articulação (da reserva de altruísmo). A saída é superar a fragmentação, potencializar o que já estamos fazendo, dando visibilidade; organizar-se em rede de autogestão e responsabilidade compartilhada (sem a preocupação de ter o controle). Não precisamos estar o tempo todo preocupados com a gerência do processo. Criar serviços de intercâmbio internacional. Existem muitos grupos trabalhando, mas não conectados. É preciso reconhecer que muitas pessoas já vivem os princípios da Carta da Terra mas não conhecem o texto da Carta da Terra. Tem muita gente pensando como pensa a Carta da Terra e aplicando em suas vidas cotidianas.
O Seminário na Amana-Key mostrou que é crucial criar uma circulação intensa entre os afiliados da Carta da Terra. Aumentar o número de afiliados e pontos focais. Criar uma informação ágil e rápida e estabelecer uma forte confiança mútua. Para sermos parceiros precisamos recuperar a confiança no ser humano desde o primeiro contato e não só depois de nos conhecer. Para sermos parceiros, precisamos acreditar na espécie humana, recuperar a crença, a compaixão pelo outro. Não ver o estranho, o desconhecido, como inimigo. Acolher. Não ser indiferente. Estar aberto ao que chega até nós.
A Carta da Terra é um documento, entre outros, mesmo que especial, relacionado com essa enorme reserva de altruísmo que existe no mundo. Ela não deve competir com outros documentos As pessoas não devem sentir-se ameaçadas pela Carta da Terra. Portanto, ceder o mérito, legitimar a quem já segue os princípios e valores da Carta da Terra. As diferentes ações precisam falar-se. Fortalecer as redes (fazer parceria entre diferentes projetos). A Carta da Terra não é um “guarda-chuva” para colocar debaixo de suas asas tudo; ela é a base, os pés, princípios de um mundo sustentável, isto é, que “sustenta”, como as raízes que dão “asas” às copas frondosas das árvores.
- Como entender a Carta da Terra?
- A Carta da Terra não é mais uma embalagem entre tantas. Ela é um conteúdo e não um continente. Seu conteúdo é como um líquido: adequa-se a todos os continentes, como uma corrente sanguínea. Ela não é um envelope. É seu conteúdo. Não é tampouco mais um território a ser conquistado. Ela deixa fluir. Devemos entender a Carta da Terra como um convite, não apenas como um documento. O documento é portador de um convite para uma vida mais sustentável. A Carta da Terra é um convite da própria mãe Terra para seus filhos. Um convite ancestral.
A Carta da Terra não é particular de nenhuma pessoa, instituição ou organização. Ela é da própria Terra. É da comunidade de vida da Terra da qual o ser humano é um capítulo. A espiritualidade da Terra é um convite para a sinergia de todos os seres vivos que nela habitam. Ela é um documento inspirador que ninguém tem o controle sobre ele (a Comissão da Carta da Terra busca preservar esse espírito). Não controle, mas facilitação, sinergia entre todos aqueles e aquelas que desejam trabalhar pela vida. Não controle, mas fazer fluir esse espírito renovador. Provocar a adesão voluntária das pessoas que se envolvem com os seus princípios e valores.
Portanto, a Carta da Terra é, ao mesmo tempo, um processo (movimento) e um documento. Ela é uma forma orientadora e portadora do sentido de uma nova civilização, uma civilização da simplicidade, da cordialidade com a natureza. Nesse sentido, disse um dos presentes, Leonardo Boff, a Carta da Terra “é melhor do que a Carta dos Direitos Humanos”. Ela é muito mais ampla, englobando toda a comunidade de vida. Ela está questionando o nosso próprio modo de vida. Devemos pensar quanticamente que tudo está ligado a tudo. Energia quântica. Não estamos sozinhos. Estamos unidos uns aos outros, em ondas e partículas (teoria quântica). Há entre todos nós um entrelaçamento quântico, como dois elétrons num só: o que um faz ressoa no outro, mesmo a distância. Se tudo surgiu do big bang, todos estamos conectados desde o princípio do tempo e do espaço, física e espiritualmente, como no “inconsciente coletivo” de Jung.
Mas devemos amar a terra sem sermos ingênuos. Temos que fazer opções. Cuidar das nossas escolhas. Não aceitarmos qualquer forma de adesão à Carta da Terra. Não aceitarmos adesões oportunísticas. Não podemos ser absorvidos pelo sistema que estamos combatendo. Estamos num período de transição para outro sistema, para outro paradigma. O sistema que temos produziu a guerra e a destruição. Não podemos aceitar que ele queira agora compartilhar valores que nunca incorporou, apenas como uma estratégia de, diante da situação que o planeta vive, encontrar formas de sobrevivência do que gerou a destruição da vida. Nós não queremos salvar o sistema que destruiu o planeta. Queremos algo diferente do que aí está.
Precisamos fazer opções políticas. Ter consciência crítica. Temos que saber com clareza porque o mundo está desse jeito. Como nos disse, enfaticamente, no final do encontro, Márcia Miranda, do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, “quero amar a Terra, mas quero amar os que têm fome, os violentados, os empobrecidos... que são o reflexo do desamor do sistema que aí está”. Como posso eu falar do meu amor para aqueles e aquelas que nunca viveram em situação de amor? O debate está aberto. O debate continua.